E afinal tudo é memória
A ligação da Natureza com a Química é o ponto de partida e o conceito da exposição Nada se perde, tudo se transforma de Beatriz Horta Correia. A artista quando idealizou realizar uma exposição no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, pretendeu apropriar-se do passado deste Laboratório de Química Analítica e da sua localização junto ao Jardim Botânico.
Beatriz Horta Correia quer que a exposição tenha relação com o lugar. Embora já tendo sido um laboratório, o espaço não está pré-concebido e pré-organizado e o resultado da sua intervenção artística e da relação dinâmica com o espaço, vai-lhe devolver uma nova leitura e interpretação. “No momento em que a Arte vem à luz, começa a nova etapa da arte. Daí em diante, qualquer das atividades aí reunidas passa a ser uma atividade profundamente problemática, com todos os seus procedimentos e, em última instância, com o seu próprio direito de existir sendo passíveis de questionamento.”[1]
Na única gaveta utilizada na exposição está o livro A vida das plantas, fonte de inspiração para a execução da exposição. “A folha é a forma paradigmática da abertura: a vida que é capaz de ser atravessada pelo mundo sem se deixar destruir por este. Mas ela é também o laboratório climático por excelência, a retorta que fabrica e liberta no espaço o oxigénio, o elemento que torna possíveis a vida, a presença e a mistura de uma variedade infinita de sujeitos, corpos, histórias e existências mundanas.”[2] O mundo vegetalista há muito tempo que está presente no trabalho da Beatriz, citando a artista, “eu não tinha consciência da importância das plantas no nosso universo, a possibilidade de vida na Terra deve-se às plantas. A criação da atmosfera, a transformação através da fotossíntese das plantas.”
No centro da sala está a instalação Plantae, composta por um conjunto de 36 desenhos que formam um grande painel. O material destes desenhos é papel de seda preto desenhados com hipoclorito de sódio (lixívia). Esta reação química e a transformação do próprio papel, coloca-nos perante situações de permanentes contágios. O estudo da relação entre os diferentes materiais e a sua influência na execução dos objectos artísticos criam uma ligação estreita entre a arte e a ciência. A peça está suspensa para que o espectador possa circular à sua volta e a sua leitura varia conforme o posicionamento do visitante e da interferência da luz.
A peça Fólios é composta por um conjunto de desenhos brancos em papel de algodão perfurado e vincado e uma capa de cartão, estão colocados sobre as duas bancadas junto às janelas. Fólios, são as duas páginas da folha de um livro, de um registro, mas folium é igualmente folha em latim. A folha das plantas tem a mesma terminologia que as folhas dos livros, também é composta por duas páginas. Estes desenhos trazem o Jardim Botânico para o Laboratório de Química, representam a estrutura de uma folha de planta e ao serem colocados dentro de uma pasta de cartão existe uma conexão com exposição aqui no museu, do naturalista Alexandre Arruda Furtado. Estes trabalhos brancos contrastam com a instalação central.
Na Hotte está colocada a peça de porcelana, Nada se perde, tudo se transforma, que dá título à exposição. Um livro com musgos a germinarem, como se a natureza nos quisesse invadir. A ideia de uma obra orgânica está associada ao estilo Natureza Morta, género que é essencialmente conectado com a pintura. Este trabalho apela à nossa consciência para a biodiversidade e a sua degradação. “O segundo intolerável de nosso mundo atual é a degradação progressiva do meio ambiente. O ar, o solo e seus “produtos”, a vegetação: tudo está poluído, imundo, até o sufocamento. A Natureza, no entanto, desde sempre se definiu por sua capacidade de renovação, de repetição do Mesmo. Dizíamos: as produções culturais se deterioram, envelhecem e morrem; a Natureza, ao contrário, é uma Primavera essencial. Tudo, sempre, recomeça. Eterna repetição do Mesmo, incessante recomeço, reaparecimento mágico das mesmas formas, frescor inalterado.[3] Suspensa está a peça About nature #1, desenho bordado em papel de arroz, com um fragmento do Génesis sobre a criação da parte vegetalista.
O conjunto de cinco porcelanas brancas que representam fragmentos de trocos de árvores, colocados em duas bancadas brancas do Laboratório também branco, também nos remetem para a química, com os seus óxidos e com a transformação da matéria de estado líquido em sólido. A subtileza do branco sobre o branco, vivenciamos o não contraste e a experiência do branco. Como nos diz Hélio Osticica, sobre a sua obra Cosmococa, “branco não é só um quadro do Malevitch. O branco com branco é um resultado de invenção, pelo qual todos têm que passar, não digo que todos tenham que pintar um quadro branco com branco, mas todos têm que passar por um estado de espírito, que eu chamo branco com branco, um estado em que sejam negados todo o mundo da arte passada, todas as premissas passadas e você e entra num estado de invenção.”[4]Completam a exposição cinco peças em grés preto vidrado, About nature #4, colocadas dentro da bancada e o conjunto de porcelanas e lápis cerâmico colocadas em cima.
A visita que Beatriz Horta Correia fez ao herbário LISU do museu, também a influenciou na execução das peças aqui apresentadas. A artista sempre se interessou pela botânica e especificamente pelos herbários, “não só enquanto arquivos de material botânico, mas também pela sua vertente plástica”, como nos diz a artista. A pesquisa é a base da exposição assim como a flexibilidade e a diversidade destas obras artísticas, é a materialização das suas memórias vivenciadas ou não.
A Beatriz Horta Correia pode por vezes destruir alguns dos trabalhos durante o seu processo criativo ou de investigação, mas, no entanto, nada se perde e tudo se transforma.
Sofia Marçal
[1] Susan Sontang, in: A vontade radical. A estética do silêncio, p. 11
[2] Emanuele Coccia, in: A vida das plantas, p. 45.
[3]Frédéric Gros, in: Desobedecer, p.8.
[4] Catálogo da exposição no CCB. Hélio Osticica, Museu é o Mundo.

Exposição "Nada se perde, tudo se transforma", 2022
Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Lisboa
Curadoria de Sofia Marçal

