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“Desenhar é levar uma linha para passear" - Paul Klee

A linha escreve, a linha desenha, a linha tece. A linha constrói.

 

Scriptorium, uma exposição de Beatriz Horta Correia, propõe-se como um “ensaio desenhado” em torno do livro, da palavra e da escrita, num processo de construção/desconstrução. Remete para questões em torno do visível e do invisível, da presença e da ausência, do pleno e do vazio, do conteúdo e da forma, num jogo entre branco e preto.

 

A mão deixa rastos.

O papel constitui-se como superfície clara e límpida, que se deixa preencher.

É com a superfície limpa e vazia, do nada inscrito na folha de papel, que Beatriz Horta Correia se confronta e apropria para nela habitar.

Os movimentos manuais ondulantes, de cima para baixo, de baixo para cima, percorridos pela mão de Beatriz desenham linhas.

Inscrevem linhas que por força da sua expressão e intersecção, geram percursos.

Seguimos as linhas.

Prosseguindo a construção urdida pela mão, conjugada com o pensamento e a sensibilidade, inscreve o seu desenho no papel.

Caminhando sobre o papel, constrói estórias.

As linhas desenhadas transmutam-se.

Linhas ligadas com nós que nos transmitem força e energia. Algumas quebram. Descobrimos fios que não se fixam na forma, caem e parecem querer ter vida própria, não se sujeitam à vontade de BHC. Linhas que desenham letras, que formam palavras que conduzirão a textos, que se constituirão como peças de escrita de livros.

Palavras desenhadas, que nos transportam o universo de conhecimento, afectivo e sensorial de Beatriz. Processo criativo que marca este trabalho.

 

Escreveu Santo Agostinho no século V dC, “que quando uma palavra é escrita, esta faz um sinal para os olhos, pelos quais aquilo que pertence aos ouvidos entra na mente”. *Parkes, M.B. (1992).

 

É aqui que o desenho e a escrita se entrelaçam e nos desafiam.

Ao ler a linha os olhos percorrem o percurso que a mão que a desenha descreveu. A essência da grafia é misteriosa, mas marcante e provocatória na busca do observador, pelo entendimento do seu conteúdo.

 

Os traços que resultam da expressão da mão, registada na sua caminhada de desenhar sobre uma superfície, constroem com as suas linhas ora palavras, ora meras perceções observáveis.

A escrita surge explícita num conjunto de obras que se relacionam, interagem, intersectam e se constroem, como partes de cada uma e de um todo. Como se as obras expostas decorressem de uma mesma família, num movimento explorador do espaço e das formas.

 

A subtileza é decisiva na forma de se confrontar com o papel e de nos transportar para a relação triangular: desenho, escrita e livro.

 

Livro artefacto que no percurso de Beatriz atravessa as diversas linguagens criativas: design, escultura, grafismo, escrita... e que em formatos diversos percorrem esta mostra.

 

O seu trabalho pressupõe uma relação afectiva com o papel, onde os desenhos se constroem entre a dualidade cúmplice da mão e das linhas, que resultam da utilização da fio/caneta/pincel/lápis como se fossem extensões da mão, num incessante trabalho de reflexão sobre a natureza das coisas. Tal como ocorre na sua relação com a cerâmica (terra, água e fogo).

Estamos face a objectos tridimensionais, construídos sobre três vectores: o suporte ( papel e cerâmica), o conteúdo ( desenho)  e o espaço. O que se nos apresenta são esculturas construídas com o saber da desenhadora de letras, que domina a linguagem da escrita desenhada, interpreta o vazio do papel com a delicadeza de uma “escriba” e o manejar do material, transportando saberes ancestrais, inscritos na matriz das suas pesquisas e experiências.

 

Não o sendo, a paginação presente no percurso das obras: espaços rigorosos, lateralidades definidas, espaçamentos, alinhamentos entrecruzados, nada é limitativo, antes no deixa espaço para imaginar os conteúdos não explícitos e subtis, que nos tocam.

 

O ritmo compassado e a escrita desenhada encaminham tranquilamente os sentidos para observações compassadas, num contraste com a pressa dos tempos que vivemos, das tecnologias que ditam pensamentos e emoções imediatistas.

 

No centro da sala está instalada um conjunto de 7 desenhos/ “Ler a Paisagem”, recorte sobre papel. Quais paredes frágeis construídas em papel, mas que carregam as palavras vazadas, que serão inscritas numa outra peça que vive projectada na sala.  A luz que emana das janelas e recai sobre as folhas transfigura a peça.  Ao longo do dia a luz que advêm do jardim, provoca leituras que em alguns momentos nos deixam ler as palavras de Beatriz, inscritas nos vazados da obra, noutros se sobrepõem e divertem, desafiando-nos a adivinhar o que a sobreposição de textos nos propõe, pelo que requisitam o tempo do observador. Textos resultantes de um auto desafio ao seu pensamento, que consistiu em descrever de forma “objectiva” o que via num dado momento. O resultado é pura poesia.

As letras descontextualizadas, retiradas deste texto aberto, foram acolhidas e aleatoriamente dispostas sobre um desenho, onde convivem com uma fotografia, projectados, sobre um grande livro de folhas brancas, criando um imaginário do futuro que está a acontecer hoje.

 

No deambular pela exposição somos surpreendidos pela “impressão digital” de BHC - “Os livros são janelas”. Peça central desta mostra, mas descentralizada. A imponente fragilidade desta peça impõe-se à arquitectura do Palácio e ao todo que vive no jardim.

O desenho oval sobre papel transparente inscreve o desenho de letras, de milhares de títulos de obras literárias, cujo tema, título, conteúdo marcaram as leituras da artista.

Palavras minuciosamente organizadas, desenhadas na tranquilidade de quem domina o tempo de fazer e a forma de relacionar o espaço, o desenho e a escrita.

 

As montanhas, transparências suspensas, a preto e branco resultam de um deambular pelo mundo, num constante questionar a relação do homem com a natureza. Montanhas articuladas e desenhadas como o mundo desejado, num ondular permanente.

Como mnemónica do passado surge a “caixa e os tipos gráficos”, criação humana no processo tipográfico, para registo dos desenhos de palavras impressas e expressas que deixam gravadas ideias que movem a história e o mundo.

 

As obras superam o seu sentido factual pela carga sensorial que comportam e que clamam.

 

 

Ana Calçada

Lisboa, setembro 2023

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Exposição "Scritorium"2023

Biblioteca de Alcântara, Lisboa

Curadoria de Ana Calçada

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